Entrevista com o M° Maurizio Maltese


Entrevistado por Tales de Azevedo (19-01-2011).

Olá pessoal! Hoje, graças à ajuda do Guro Davide Lupidi, estamos publicando, pela primeira vez em português, uma entrevista completa com o mestre italiano Maurizio Maltese, presidente e fundador do Instituto Superior de Artes Marciais. Nessa entrevista, repleta de fotos inéditas, o mestre conta sobre o seu histórico nas artes marciais, seu ingresso no mundo do Silat e do FMA e seus atuais trabalhos para a divulgação dessa arte.





1- Olá Guro Maltese, muito obrigado por nos conceder esta entrevista! Você poderia começar falando um pouco sobre você e o seu começo com as artes marciais?

1. Como quase todos os homens da minha idade (51 anos atualmente) comecei a praticar naquela época em que no mundo ocidental quase só se conheciam as artes marciais japonesas, e fiz Judô. Comecei muito jovem, mas a luta japonesa é ainda hoje uma atividade pela qual tenho um profundo amor e respeito, sobretudo pela original, aquela de Kano e Mifune. Todavia como atleta esportivo paguei um alto preço por esta disciplina: durante a preparação para um torneio importante, um faixa preta e instrutor (que era o adulto que meu mestre tinha destinado para a minha preparação) quebrou meu braço de forma bastante grave.
Meu pai, que sempre foi contra as artes marciais, colheu a ocasião e me obrigou a interromper o meu treino para as competições, com a agravante que os riscos podiam comprometer meu estudo de violino que já era avançado, por isso meus pais eram convencidos de que o Judô não era uma prática conveniente para o próprio filho.
Quase um ano depois do acidente chegou à cidade de Sesto San Giovanni (perto de Milão) um mestre de artes marciais orientais trazendo uma disciplina do Vietnam, o Viet Vo Dao, eram os anos setenta (o período boom do Kung Fu). Convenci meus pais que se tratava de uma arte de outro tipo e consegui voltar para os treinos fazendo algo de novo e diferente do Judô mas para mim estava tudo bem, pois podia treinar alguma coisa... era sempre uma arte marcial.
Durante os anos seguintes pude treinar também Karate e Aikido e fiquei caçando tudo o que eu podia achar em Milão e lugares próximos. Consegui fazer de tudo, pois aos meus pais só importava que não fosse Judô. E assim continuei até o momento da minha primeira viagem para o Extremo Oriente.



2- E as artes marciais da Indonésia e das Filipinas? Como foi sua aproximação com elas?

2. Um amigo de família tinha um irmão que trabalhava para uma multinacional na Indonésia, em Bali. Eu teria preferido uma viagem ao Japão, Vietnam ou China, pois na Indonésia não sabia se valia a pena, não sabia nem se existiam artes marciais por lá. Os livros específicos sobre artes marciais, as revistas, noticias que circulavam não tratavam nada sobre Indonésia. Peguei então a enciclopédia e, nessa, vi pela primeira vez o estranho nome de Pencak Silat, e o comentário brevemente dizia "espécie de Judô indonésio". Tudo bem! Tinham coisas para eu me interessar e ir ver.


Bakti Negara Silat (estilo oficial da ilha de Bali), fundado em 1955 por Ida Bagus Oka Dinwangara. É uma versão moderna de Silat que mistura elementos antigos com influências de outras artes marciais, para competições desportivas. Outro estilo de Silat moderno é o Merpati Puthih, sempre em Bali. Na foto acima, à esquerda: M° Maurizio Maltese com os dois exponentes do Bakti Negara: M° I Nyoman Buartana e Wayan Dana Wijaia. Na foto à direita o M° Maltese com a seleção desportiva balinês de Merpati Puthih (estilo moderno, fundado em Java) do M° Kiana.Outro estilo de Silat “moderno” é o Perisai Diri, também da ilha de Java. O termo “Beladiri” é usado para indicar a defesa pessoal no Silat.



3- Você poderia nos falar sobre o seu estudo de Silat?

3. Tento, para começar, resumir a primeira viagem na Indonésia da qual falei na pergunta anterior. Cheguei em Bali e comecei logo a procurar lugares onde se praticava essa estranha disciplina chamada Silat. O primeiro impacto foi uma terrível sensação de desilusão: nada daquilo que consegui achar me entusiasmava, e tudo que eu via não era muito diferente das outras artes marciais que já tinha visto, até pensei de ter visto coisas melhores na minha pátria. Decidi me dedicar então à minha segunda paixão, a música. Bali oferecia aos amantes da musica uma ocasião única: assistir às representações de Gamelan, a orquestra composta por idiofones (instrumentos a percussão com som metálico). Pedi indicações e me endereçaram para um lugar onde me disseram que talvez poderia achar algo de interessante a respeito. Armei-me de gravador emprestado e parti em caça de sons com outros amigos. A gente usava motos alugadas e chegamos no bairro (ou “banjar”) que nos tinham indicado, não muito distante da moradia do meu hospede. Em busca do Gamelan me enfiei pelas estreitas ruazinhas com os outros, até que chegamos numa pracinha interna coberta por um lindíssimo teto de vidro balinês onde tinha a musica tradicional que a gente procurava, no meio de pessoas vistidas com o tradicional Sarong e um monte de crianças (que, a diferença dos lugares turísticos, não se aproximaram tentando vender de tudo, mas somente ficaram olhando para a gente, curiosos), e também vi alguns jovens que se dedicavam a uma disciplina marcial no mesmo lugar. Ficamos observando aos margens e ninguém nos disse nada, além de “tidak foto” (nada de fotos) quando a gente puxou as máquinas fotográficas. Os que treinavam, executavam ao ritmo do Gamelan vários movimentos que nunca tinha visto antes: movimentos em espiral chegando até o chão, muito próximo do chão, se agachando de maneiras incomuns para depois ficar de pé em velocidade inesperada pela posição que se encontravam. Até quando ficavam no chão conseguiam modificar uma situação de luta que aos meus olhos profanos parecia de desvantagem. Quando um parecia cair em uma armadilha sem saída, ai que se saia com algum daqueles movimentos particulares, para mim estranhos, e a situação mudava.
Gostei desde logo!
Nasceu naquele momento um amor intenso e indestrutível. Finalmente tinha achado uma disciplina que me parecia completa, fascinante, elegante e ao mesmo tempo eficaz.
No fundo da sala estava um velho que controlava os jovens praticantes e imaginei que fosse o mestre. Por um momento me pareceu viver naqueles filmes de artes marciais da minha adolescência. Mais tarde soube que o velho era um dukun (um ministro de culto) que descia na cidade somente em ocasião das festas hindu.
Era o mestre? E se era, como contatá-lo e falar com ele?


Ilha de Bali: O grande mestre Wayan Rereh, também dukun de religião hindu.


Naquele tempo (anos oitenta) não era fácil achar alguém que falasse inglês em Bali (diferente de hoje, que jovens balineses não só conhecem inglês e japonês, mas até italiano eu pude ver!). A sorte me ajudou pois tinha várias pessoas assistindo aquele evento, que parecia ser algo de mais ou menos público, e no final do treino um grupo de orientais se aproximou e eu vi que entre eles tinha também um ocidental, que conversava em balinês e parecia integrado no ambiente. Ele também tinha notado a gente, e para minha grande surpresa esse cara perguntou: "vocês são italianos?". Também os meus acompanhantes ficaram surpresos pois nunca tinha acontecido ainda de cruzar com outro italiano nas rotas pouco turísticas.
O jovem ocidental era um italo-espanhol que vivia em Bali. Se chamava José e até me disse que esperava poder voltar a viver em Roma logo que fosse possível. Entre várias coisas me lembro que lhe perguntei como faziam aqueles pobres a cair no chão duro sem usar o tatame nos treinos.
José disse que não intendia muito, mas devia ser algo que tinha a ver com a respiração que ajudava para não se machucar caindo, e que era uma arte marcial meio "esotérica" aquela. Perguntei então se era possível conversar com o dukun em privado e o José, depois de traduzir o pedido e ter escutado a resposta dos praticantes, me disse logo que aquilo seria impossível. De segunda intenção então perguntei se era possível falar com um outro instrutor dos que estavam aí presentes, e depois de uma conversa e varias outras perguntas, afinal meu grupo foi convidado para tomar um chá numa casa ali perto, com o José de intérprete. Fomos hospedes na casa de um dos mestres mais jovens, aluno do velho, que se chamava Ketut Gysir. Conversamos bastante, mesmo se precisava de tradução para quase tudo. Em certo momento, depois de várias duvidas esclarecidas, consegui perguntar se o mestre podia me ensinar alguma coisa, mesmo eu sendo de fora, para que pelo menos eu pudesse levar comigo de lembrança e continuar treinando. O José negociou bastante, e o resultado inesperado foi que consegui me fazer aceitar como aluno, e até teve uma pequena iniciação para eu ser introduzido à arte segundo a cultura deles. Fiquei feliz, e quando perguntei o motivo daquela aceitação, naquele primeiro dia o intérprete me explicou que as escolhas naquela comunidade muitas vezes eram feitas lendo os “sinais”, e o fato de eu ter me encontrado ali no dia da celebração deles, com a presença do mestre velho, dos outros praticantes e de outro ocidental amigo deles, provavelmente tinha sido interpretado como um sinal de que eu podia participar das atividades deles. O tradutor porém me avisou para não me iludir, pois assim como tinha iniciado, aquela história podia terminar sem algum pré-aviso ou explicação.


Ilha de Bali: Guru Ketut Gysir (Cidepok Pencak Silat), também mangku de culto hindu.


Ele porém se enganava. Frequentei aquele lugar por muito tempo nos anos seguentes, fazendo no mínimo dois meses ou mais na Indonésia por cada ano. Aprendi o estilo que depois me serviu como guia para o estudo de todos os outros estilos da antiga tradição indonésia que estudei. O estilo se chamava Cidepok e era difundido na comunidade hindu. A coisa mais dificil dos primeiros meses de treino foi a comunicação, pois o tradutor não estava e o mestre Ketut conhecia somente poucas palavras de inglês (creio que não superasse os 30 termos), e meu indonésio era muito fraco ainda, tanto que tinha que usar o dicionário para qualquer coisa.


Cidepok Pencak Silat: M° Maltese com Wayan Rereh e Ketut Gysir (aluno de Rereh), em Bali.



Com os outros alunos do velho mestre (o dukun, de nome Wayan Rereh) aprendi em seguida o estilo Citembak, estilo explosivo, e o uso das armas.
Um dos maiores expertos de Cidepok com o qual treinei era o mestre Ketut Gysir, do qual falei acima. Pelo Citembak foi o mestre Anak Agung Alit Pemegu, que era até descendente de um rei balinês. O mestre Agung também foi aluno de Wayan Rereh, como Ketut.


Ilha de Bali: Guru Anak Agung Alit Pemegu (Citembak Pencak Silat).


M° Maltese com Guru Anak Agung e o filho (expert de Bakti Negara Silat).

Foi graças a esses conhecimentos que nos anos seguintes eu pude reconhecer e distinguir os estilos de Silat antigos dos modernos, reconhecer os estilos marciais e desportivos, aqueles eficazes e aqueles só demonstrativos.
Em seguida estudei em Java e sobretudo em Sumatra, onde aprendi o estilo Harimau (tigre) com um mestre que era uma lenda vivente, o mestre Malano, que se pode ver nas várias fotos aqui em baixo.


Sumatra Oeste: o grande mestre Malano (Harimau Silat).










Em seguida fui treinar no estilo Buaya, Karbau, Kuching, Elang, e outros... todos estilos inspirados em animais. Também durante as viagens pelas varias ilhas indonesianas pude praticar outros estilos originários de várias etnias, como Pauh, Kumango, Minangkabau.


Na área dita Java Oeste se podem encontrar estilos rurais praticados em aldeias, cujo nome de quase todos tem o prefixo “CI”: Cimande, Cikampek, Cikalong, Cimacan, Ciular, Cipetir, Cibedujut, Cimalaja, Cikabong. Alguns desse estilos imitam animais, como o Ci-Macan (tigre, também conhecido como Harimau), Ci-Ular (serpente), Ci-Kalong (morcego); outros indicam somente estilos nascidos em uma determinada aldeia. Na foto acima, M° Maltese com um praticante experto do estilo da Águia, em demostração em Sumatra.




Na terra de etnia Minangkabau, em Sumatra, antigamente fértil pelo que pertence os estilos de Silat mais interessantes da Indonésia, existe agora uma especie de federação que tenta reunir todos os estilos tradicionais (Minang) chamada “Silek Tuo”, onde com o termo Silek se intende o Pencak Silat tradicional de Sumatra ocidental.O termo Pencak Silat, em Sumatra Oeste, é traduzido da seguente forma: Pencak indica os movimentos marciais de uma arte, e Silat a aplicação em combate dos movimentos aprendidos. Na foto acima: M° Maltese com o Guru Nasrul, do estilo Satria Muda.




Á esquerda: M° Maltese com Guru Panglimam Hitam. Á direita: Maltese com um exponente do Silat Perentian.




Á esquerda: M° Winda mostrando um “sigilo” do Sri Murni, a escola indonesiana de “energia interna”. Á direita: M° Maltese treinando com Dan Inosanto (Mafelindo Silat).



4- Sobre o seu estudo de Kali? Como foi?

4. Depois da minha primeira viagem à Indonésia o interesse pelo Silat era ao máximo, e na Itália procurei algo de parecido para praticar. Encontrei assim um mestre filipino recém chegado à Itália. Fiquei sabendo que o mestre Matagay, como se chamava, tinha sido guarda-costas entre as tropas de Marcos, o ditador das Filipinas (hoje possuo numerosos diplomas e reconhecimentos entre os quais um da Fundação Marcos, assinado pela esposa dele). O Matagay, sendo guarda costas, teve como frequentar o embaixador indonésio em Manila e me disse ter treinado um pouco de Silat também. O Silat dele porém nunca apareceu, mas no entanto eu estava tendo oportunidade de treinar Arnis de Mano, o que conhecemos no ocidente como Kali. Quem treina Kali sabe que é um maravilhoso exemplo de fusão entre as artes européias, ou seja, a antiga esgrima (muito mais completa e diversificada do que a olímpica de hoje) e as artes indígenas do arquipélago asiático. Nesse mix entram também as artes orientais de vários tipos. Em prática, as Filipinas foram a forja na qual se juntaram artes ocidentais e artes orientais. Esses ingredientes são presentes em doses diferentes dependendo de cada escola e ilha que se considera. O mestre Jun Ibanez Matagay era um experto de vários estilos, mas entre todos os conhecimentos dele sobre Kali, sobressaia o sistema do mestre Proferio Lanada.


M° Maltese con M° Dan Inosanto, M° Richard Bustillo, M° Bob Breen, M° Rodel.




M° Maurizio Maltese: video de Kali para Budo International.



5- Sobre o AR.MA.T.O: graças ao Prof. Davide Lupidi, nós aqui no Brasil tivemos a oportunidade de conhecer essa incrível modalidade da sua escola. Eu pessoalmente, achei ótimo o curso de esgrima de adaga de tradição italiana. Conte-nos, como foi o início dessa arte? Quem foi o grande inspirador da mesma?

5. AR.MA.T.O (Artes Marciais de Tradição Ocidental) é a parte da FISAM que cuida do Patrimônio Marcial do Ocidente e da Itália em particular, preservando os conhecimentos contidos nos tratados históricos, o processo de evolução da Esgrima e como isso filtrou na sabedoria marcial popular, sobretudo no uso da faca e no uso do Bastão, tudo isso ainda presente nos esquemas de treinos sobrevividos dentro das sociedades secretas.
A arte marcial filipina, como já disse, é profundamente influenciada pela cultura marcial européia e em particular pela escola de combate (com armas e sem armas) do período pré-renascentista e renascentista. Neste caso as afirmações e as teorias a respeito podem ser suportadas por tratados italianos e espanhóis. Se por exemplo consideramos o Flos Duellatorum (tratado italiano escrito em 1409 pelo mestre Fiore dei Liberi, nascido no Friuli, uma região situada a nordeste da península italiana) podemos aprender, pelos iluminados desenhos e os inteligentes comentários e dicas escritas, técnicas de chaves articulares, desarmes de espada, golpes de bastão, técnicas de luta, daga contra daga e mãos nuas contra adaga, etc. Praticamente todo o material que deixou famoso no mundo o Kali filipino de hoje. Sem dúvida existiu uma grande influencia vindo do ocidente para oriente, e com o tempo essa fusão se solidificou mais, dando origem a um produto totalmente novo e do qual os ingredientes não são mais os mesmos, mas uma nova matéria atualizada e transformada de forma mais apropriada aos nossos dias. Basta pensar em como a arte na qual os italianos eram os mais famosos na época, onde se fazia uso simultâneo da Espada em parceria com a Adaga na mão esquerda, se transformou nas Filipinas em uma disciplina prática e atualizada usando bastão e faca.
A certa altura dos meus estudos comecei a me interessar pelos tratados antigos de esgrima de espada, bastão e adaga, e essa pesquisa me permitiu não somente conhecer melhor muitos ingredientes do Kali, mas sobretudo de refinar as diferentes escolas de Kali Arnis e Escrima que já tinha estudado.



“Flos Duellatorum”, tratado italiano de 1409 (M° Fiore dei Liberi).




“Opera Nova dell’Arte delle Armi”, 1536 (M° Achille Marozzo).




“Scientia d’Arme”, 1553 (M° Camillo Agrippa).




“Gran Simulacro dell’Arte delle Armi”, 1610 (M° Ridolfo Capoferro).




“L’Arte di ben maneggiare la Spada”, 1653 (M° Francesco Alfieri).



O conhecimento das antigas artes européias me deu uma marcha a mais na prática do Kali, todavia eu precisava também de experiências praticas feitas com expertos que continuavam a tradição marcial ocidental, e não só de experimentações feitas interpretando os tratados antigos. Comecei assim um caminho meio aventuroso e por certo lado perigoso: o estudo da esgrima de faca na tradição italiana. Digo perigoso porque não se tratava de poder treinar em academias e ter aulas como uma disciplina normal, mas tive que em alguns casos pegar contatos e ser aceitado em alguns grupos fechados ou que tinham algumas ligações mafiosas, do tipo de Camorra e ‘Ndrangheta. Tive sorte porém, e consegui visitar vários lugares onde se continuava a tradição italiana de bastão e faca, conhecendo uns mestres dessas artes, como o mestre Nuccio que aparece nas fotos. O mix foi explosivo: de um lado experimentações feitas sobre os tratados italianos (mas também espanhóis e franceses) pesquisando sobre a ciência de combate histórica, e do outro lado as aulas praticas e construtivas, ricas de malandragens e dicas sobre a escola italiana (sobretudo do sul). Tudo isso foi feito sem esquecer a experiência do Kali filipino, que facilitava muito a assimilação e a discriminação das técnicas. Por concluir e verificar, o último passo foi o de estudar a esgrima moderna, com o mestre Lodetti (que foi treinador do time nacional italiano). Nasceu assim, por exemplo, a didática que usamos no curso de esgrima de faca da tradição italiana que é presente entre os outros cursos do AR.MA.T.O. Partimos das bases em comum com a esgrima nobre (posições, guardas, passos, golpes, defesas, combinações) para chegar depois aos golpes e técnicas típicas dos mestres antigos, treinos e técnicas populares ou históricas que se distanciam e não se parecem nem um pouco com a esgrima de espada moderna. O treino assim pode abranger cada aspecto do tema.


M° Maurizio Maltese com M° Nuccio.







6- Hoje na América Latina temos diversas escolas isoladas de FMA. Algumas se reconhecem mutuamente. Outras preferem o isolamento. Qual a sua opinião sobre esse cenário?

6. Hoje, no mundo todo, o enquadramento de uma escola numa federação ou conjunto de grupos para o reconhecimento dos programas, das graduações e dos diplomas pode ser uma boa ideia. Obviamente, é uma boa ideia quando a união se baseia nos princípios saudáveis de recíproco enriquecimento cultural. Se, pelo contrario (como infelizmente acontece em todos os lugares) a união só serve para objetivos "políticos", ou seja para aumentar os números (e então o poder) obviamente a qualidade passa em segundo plano, e só fica como prioridade a publicidade e o marketing. Essa pode ser uma explicação da perda de credibilidade de algumas disciplinas marciais. Do outro lado, porém, o isolamento não permite a necessária atualização técnica, metodológica, didática e cultural. O equilíbrio eu creio que, como sempre, fique no meio: de um lado a aprofundada preparação dos instrutores, mestres e professores da arte, e do outro lado uma organização com o objetivo de aumentar e melhorar sempre essa preparação profissional e ao mesmo tempo criar uma forma de tutela na selva do marketing de hoje em dia. De toda forma, o centro de gravidade deve ser a arte, e não a exagerada promoção individual, ou a participação a uma escola de forma que se parece mais com a torcida de futebol do que com um verdadeiro amor pelo desenvolvimento do grupo ao qual se pertence.



7- Na Itália você fundou o ISAM, Instituto Superior de Artes Marciais. Qual o papel desse instituto hoje na Itália?

7. Antes de fundar o ISAM, teve a experiência da AKEA, dedicada somente as artes marciais filipinas. Depois de algumas pesquisas, quase em pouco tempo consegui juntar outros apaixonados da arte filipina e todos concordamos que a gente necessitava de uma organização, se desejávamos que o Kali na Itália evoluísse e aumentasse. Fundamos a AKEA (Arnis Kali Escrima Association) com o objetivo não só de difundir as artes marciais filipinas na Itália, mas também de criar uma organização que nos permitisse convidar os maiores expertos asiáticos e de outros países para ministrar cursos, pois nosso interesse era grande e as fontes poucas.
O começo da organização foi ótimo: a cada seminário conseguíamos juntar pessoas vindas de vários lugares da Itália, e graças aos nossos esforços começaram a aparecer na Itália personagens como por exemplo Dan Inosanto, Richard Bustillo, o inglês Bob Breen, e muitos dos alunos deles tiveram sucesso na Itália graças a isso. No entanto, minhas viagens à Ásia e algumas vezes à Europa para treinar nunca pararam e continuei meus estudos, e sempre ficava integrando e comparando tudo o que aprendia em qualquer lugar.
Depois da experiência da AKEA, fundei então o ISAM (Instituto Superior das Artes Marciais) para não ser somente preso nas artes filipinas, e poder inserir outros tipos de experiências e cursos, para dar uma formação mais completa e vária, numa escola em condição de acolher experiências diferentes, mas todas ligadas por um fio lógico condutor. Além disso, no ISAM usamos metodologias modernas e didáticas organizadas para poder aproveitar o tempo da melhor maneira possível, já que temos alunos por toda parte da Itália e precisava de uma organização nesse sentido, um método de seleção e formação dos instrutores para que a qualidade pudesse se manter elevada e não caísse em algo de comercial, como muitas vezes acontece nas organizações grandes, se quem dirige não fica atento.


Em 2008 a WTKA, uma das maiores formações no mundo pelas artes marciais, me deu o prêmio como mestre do ano pela difusão das artes marciais e disciplinas psicofísicas do sudeste asiático, e me pediu de colaborar com eles. Em 2010 a FISAM (a federação de todos os centros ISAM presentes nas várias cidades da Itália) participa do "Festival do Oriente" e a partir daquele momento começa a parceria com WTKA. Hoje FISAM é reconhecida pela WTKA e participa a cada ano da reunião internacional.

O ISAM então nasceu depois de um caminho formativo que durou mais de trinta anos. Como se pode ver, o nome em si já põe o acento sobre a função de escola e instituto, ou seja um lugar de estudo e onde se coloca a disposição dos estudantes vários programas qualificados, pesquisa, experimentação, história, cultura e obviamente um saudável trabalho pratico que consegue ao mesmo tempo conjugar tradição e necessidades modernas. Os centros ISAM, ou seja, os diferentes institutos difundidos no território, tem uma espécie de autonomia didática, porém coordenada pela FISAM, que é a federação de todas as escolas e que garante a qualidade e a qualificação dos instrutores, e também certifica os cursos segundo o programa reconhecido e difundido por escrito aos alunos.
A liberdade é deixada aos mestres e instrutores da escola pois muitos deles viajam para Oriente, nas Filipinas e Malásia, Indonésia para aperfeiçoar-se ou simplesmente por curiosidade, então todos eles, ao voltar, sempre dão uma contribuição boa pelo desenvolvimento da FISAM.
Como instituto de pesquisa, temos também uma intensa atividade de divulgação e publicação (os livros publicados e traduzidos são muito numerosos), vídeos, artigos, seminários, cursos de formação, demonstrações, colaborações com parcerias, etc.


FISAM (Milão 2010).



8- Sobre o Maltese Close Combat. Há um “tempero” nele que lembra alguma coisa de Silat e de FMA. Você poderia nos falar a respeito?

8. Hoje em dia existe uma espécie de moda pelo que pertence os cursos de combate militar, defesa pessoal e sistemas tipo Krav Maga e outros parecidos. O nosso curso de Close Combat porém nasce por volta do ano 1990. Em 1997 é publicado o livro, pelas edições Mediterranee de Roma (a mais qualificada editora italiana sobre artes marciais). Na capa do livro está escrito “combate corpo a corpo: as melhores técnicas extraídas do Kali, do Silat, do Jeet Kune Do e das artes marciais israelenses”. O Close Combat não é uma arte marcial, mas um sistema de combate extremo e não competitivo que se atualiza a cada ano, dependendo das necessidades.
Naquela época eu apresentava ao público italiano também as artes de defesa desenvolvidas em Israel, porém na verdade eu não me referia especificadamente ao Krav Maga, mas a um sistema mais simples e antecedente, criado pelo doutor Moshe Feldenkrais, que é famoso no mundo sobretudo pelo método para o melhoramento da utilização do corpo, e não pelas artes marciais. Fiquei conhecendo o sistema do doutor Feldenkrais durante a minha formação quadrienal em educação psicomotora. Soube então que, além das atividades psicomotoras pela qual era famoso, e antes de ser o primeiro faixa preta de Judô da Europa (por vontade do próprio fundador do Judô, o mestre Jigoro Kano) o jovem Feldenkrais tinha elaborado um sistema de defesa pessoal para os membros da Haganah (o serviço de ordem do recém-nascido estado de Israel). Mesmo sendo primitivas, as técnicas apresentam ideias extraordinárias e evoluídas. Essas ideias explodem quando na Inglaterra o jovem Feldenkrais deve adestrar as forças policiais que tem a difícil tarefa de manter a ordem durante a segunda guerra mundial. Consegui achar os manuais (o mais importante deles é “Unarmed Combat”) e entrevistei os velhos ensinantes que tinham trabalhado com Feldenkrais. Isso me enriqueceu muito, participando junto com o Kali, o Silat e o Jeet Kune Do para a criação do nosso Close Combat. Testamos periodicamente e melhoramos o sistema mantendo sempre como idéia de base os parâmetros militares de “extrema ratio” e eficiência. O sucesso do livro e dos vídeos publicados por Budo International, fora os cursos de formação que fizemos, levaram muitos a copiar a ideia usando nomes parecidos ou até o mesmo nome as vezes, mudando letras. De consequência, para diferenciar, fui obrigado em seguida a colocar o prefixo “Maltese’s Close Combat” no nome do sistema.





9- Jeet Kune Do é uma das áreas de estudo do ISAM. Pelo mundo a fora é quase impossível falar de Kali sem falar de JKD. Qual a sua opinião sobre essa relação?

9. O sistema de Bruce Lee, o Jeet Kune Do, ensina a não fossilizar-se somente no próprio estilo mas enriquece-lo absorvendo tudo que é útil ao melhoramento. O próprio JKD é uma inteligente fusão de artes chinesas como o Wing Chun, com artes ocidentais como Boxe, Luta e sobretudo Esgrima. Dessa última disciplina o Pequeno Dragão intuiu a eficiência estratégica e a economia de movimento, transferindo a atividade marcial armada ao combate desarmado. Também os métodos de treinamento se renovam, distanciando-se do tradicional: se usam luvas, sacos pesados e leves, focus gloves. Depois da morte de Bruce Lee essa pesquisa evolutiva continua, orientando-se sobretudo para as artes marciais filipinas pois muitos princípios teorizados por Lee se podem achar nessas artes. Devemos dizer que nem todos os herdeiros de Bruce Lee vão nessa direção, mas a maioria sem duvida se aproxima ao Kali, e também às artes da Indonésia e Malásia. Quando se aprende o Jeet Kune Do não somente por imitação exterior, mas se tem compreendido a fundo o método de pesquisa e a filosofia que está na base, isso confere ao praticante ótimos instrumentos na aprendizagem e avalização de qualquer arte, incluídas as do sudeste asiático. Podemos sinteticamente dizer que um bom praticante de JKD sabe praticar também as artes marciais tradicionais, com uma marcha a mais.



10- Dentre em breve, nós esperamos ter a volta do professor Davide Lupidi aqui no Brasil. E você? Algum plano de visitar nossa terra?

10. O Brasil é uma terra belíssima, na qual se encontram muitos apaixonados pelas artes marciais, e muitas pessoas seriamente interessada em praticar. O professor Lupidi treina com a gente desde o ano 2002, mas tem treinado no Brasil também e considera essa terra como uma segunda pátria, onde aprendeu muitas coisas e tem amigos preciosos que são praticantes de grande valor, dos quais me fala sempre e que espero ter o prazer de conhecer. Creio sinceramente que nossa escola poderia contribuir pela difusão no Brasil das artes marciais que todos nós praticamos e respeitamos, pois os encontros entre praticantes e a troca de conhecimentos são fundamentais para o crescimento da sabedoria, em qualquer modalidade. Graças à atividade séria de Davide Lupidi, que é atualmente o representante ISAM no Brasil, creio que será possível organizar uma viagem minha para essa terra com o objetivo de fazer conhecer nossos cursos e poder formar em tempo razoavel uma série de instrutores que possam continuar a obra e difundir os conhecimentos no território brasileiro, coordenados pelo prof. Lupidi.


M° Maurizio Maltese com o Prof. Davide Lupidi (2008).



Muito obrigado por essa conversa! Gostaria de deixar uma mensagem para os nossos leitores?

Estar sempre disponíveis para evoluir, sem preconceitos, mas testando sempre.

M° Maurizio Maltese